Favelado's diary

Favelado/Favelada: A male/female resident of a Favela. Politically, the term is used to reappropriate a marginalized identity.

“The criminalization of poverty is the strategy to keep the system functioning against black populations in Brazil and in the world, because if the favela exists and is marked by the stigma of social violence, it does not come free or without interest.”

From Lost Bullet

English Translation here.

Diário de um favelado

Muito se fala sobre guerras no mundo. Guerra entre povos, tribos e estados nações, as guerras não são coisas novas. Já ocorreram tantas guerras ao longo da história, que costumamos até aceitar ou tratar como algo normal, muitas vezes, quando alguém nos da à notícia de que está havendo uma guerra aqui ou alí, uma guerra contra os povos tal, entre um país ou outro nós aceitamos como uma coisa banal. Enfim, a palavra guerra é utilizada como sinônimo de conflitos bélicos, ideológicos ou mesmo entre Estados. Ao longo do século XX, os governantes cunharam o termo “guerra às drogas” para combaterem uso legal de substancias que alteram nossa percepção, denominadas como “drogas”, uso genérico do termo refere-se a qualquer substância que produza algum efeito psíquico de bem ou mal estar ao ser humano.

O que eu quero trazer para vocês é o relato reflexivo de alguém que nasceu no coração de uma favela brasileira marcada pelo contexto de “guerra as drogas”. Nascido e criado numa território de pujante desigualdade social e precariedade urbana, tanto a venda quanto o uso de drogas nunca foi uma novidade para mim, desde a tenra infância convivi com usuários de drogas, traficantes ou vivenciei situações de conflito com armas de fogo, que me proporcionaram sobreviver e garantir minha vida apenas por uma questão de sorte, digo isso porque posso listar mais de uma centena de pessoas que foram amigos meus em algum momento, porém hoje se encontram enterrados por causa desses conflitos envolvendo guerras faccionárias ou enfrentamentos com a polícia, no entanto, meu intuito aqui não é criar histórias sobre a violência para alimentar um imaginário distorcido sobre as periferias, tal qual faz a mídia brasileira. Do mesmo modo, não quero alimentar qualquer estereótipo ou ideia fixa de como é ser periférico ou mesmo como é viver nesses territórios, pois, as estratégias de sobrevivência e compreensão da realidade, são tão diversas aqui, quanto em qualquer lugar que tenha seres humanos, no entanto, apresento aqui, o relato de um favelado que não se conforma com a torrente de mentiras e violências propagada por instituições de poder, que se alimentam da desigualdade social e da própria vida das populações negras e faveladas no Brasil.

O termo favela é nome de uma planta originário do sertão da Bahia. Os usos do termo favela emergem no contexto da “Guerra de canudos”, que na verdade não foi bem uma guerra, fomos ensinados assim pela mídia e pela escola, para esconder as práticas genocidas que o Estado vem perpetrando contra o povo negro ao longo dos seus 500 anos, porém, quero dizer que, em  Canudos, o que houve mesmo foi um massacre de populações cristãos que decidiram criar uma comunidade baseada em princípios de solidariedade e fraternidade entre 1896-1897 em regiões marcadas por latifúndios e pela seca. O Estado Brasileiro sentindo-se ameaçados pelo surgimento do Arraial de Canudos e decidiu enviar o exército da recém-formada república para massacrar as populações locais, numa demonstração de força bruta e poder. A comunidade que havia se organizado em torno dos princípios do líder religioso Antônio conselheiro, milhares de Sertanejos decidiram criar uma comunidade pautada em princípios de solidariedade e apoio mútuo.

Três expedições militares foram enviadas e derrotadas pela população local, usando apenas enxadas, facões e conhecimento territorial. As populações locais haviam experimentado uma sociedade mais justa e igualitária, num contexto onde metade da população nacional estava em condições de extrema pobreza. Indignados com as derrotas, as forças militares decidiram destruir o Arraial massacrando sua população e gerando vinte mil prisioneiros de guerra, entre mulheres, idosos e crianças os militares praticaram a degola dos prisioneiros e o incêndio do Arraial.

O que essa história tem a ver com a favela e a guerra às drogas você me pergunta? Pois bem, é interessante saber que os soldados enviados para o massacre corridos em Canudos, eram soldados negros e pobres, motivados pela promessa de ganhar do governo de que se estes saírem vitoriosos da “guerra”, receberiam residências e um soldo para que estes pudessem se estabelecer. Acontece que após os soldados retornarem e verem que a promessa não seria cumprida e que as forças militares não respeitaram o pacto, esses soldados ocuparam uma parte do morro da Providência em protesto no Rio de Janeiro de 1987 e plantaram as mudas da “Favela” que haviam trazido do massacre de Canudos.

O que considero relevante nessa história é que se por um lado as forças militares eram compostas por homens pretos que viviam sob a promessa de terra e soldo após a vitória nos conflitos em Canudos, estando estes homens sem moradia, renda ou condições de existência, desde que as populações pretas foram expulsas das fazendas após a assinatura da lei Aurea em 1888, milhares de pessoas passaram a sair vagando pelo sertão a procura de condições de sobrevivência, uma parte dessas populações decidiram construir uma cidade a partir de trabalho comunitário na tutela de Antonio Conselheiro, outra parte, motivadas pelas justificativas bélicas do governo, decidiram compactuar com as forças do Estado na atuação ostensiva contra essas populações, tendo em vista as condições de instituição desse pacto, o governo pagou outro contingente populacional, também desesperada por falta de moradia, emprego e alimentação para destruírem Canudos sob a promessa de uma terra e um soldo. Dando seguimento as políticas de embranquecimento e destruição das populações escuras que começaram desde 1850. Pretos pobres mantando pretos pobres em nome dos interesses das elites brasileiras.

Esse pequeno relato histórico ao qual expus em breves linhas, é bem ilustrativo sobre a maneira que o Estado brasileiro vem tratando as populações negras nesse país. Os jogos políticos que se instituem na sociedade capitalista, onde populações em situações de vulnerabilidade e precariedade social são utilizadas como massa de manobra de governos racistas que atuam, hora mobilizando setores pobres a perpetrar massacres contra seus semelhantes de cor ou étnicos, em guerras e conflitos que atuam na própria destruição e controle social do povo preto e indígena em nome da soberania nacional, hora cooptando e promovendo a ascensão social e papel político, daqueles que se filiam as forças nacionais e ajudam a perpetrar a violência e a manutenção da desigualdade.

A possibilidade de ascensão social no Brasil para as pessoas pretas, precisa romper as estruturas de poder arraigadas no conjunto de instituições que constrangem e impedem o desenvolvimento das pessoas pretas está intrinsicamente ligada ao Estado, desprovidos de terras, bens e cidadania, aos moldes da ficção de igualdade liberal, que pauta sua cidadania na propriedade provada, estando as pessoas escuras fazendo parte de uma população que foi escravizada durante 400 anos e sendo “liberta” sem nenhum tipo de reparação social.

Os empregos que possibilitariam melhor desempenho social seriam os cargos de servidores públicos concursados, como é o caso de professores, policiais, e afins.

O que estou querendo dizer é que manter as pessoas pobres é uma das estratégias utilizadas pelas elites para assegurar o controle social por meio da força, tanto que o próprio Michael Foucault afirma que as prisões desde que foram criadas, eram utilizadas contra os pobres, pois esses não tinham dinheiro para pagar o valor de suas sentenças, sendo obrigados a cumprirem suas penas trabalhando nas cadeias em regime escravo. A desigualdade social e econômica no Brasil tem cor, territorialidade, e seguem os interesses políticos das elites escravagistas. A criminalização da pobreza é a estratégia para manter o sistema funcionando contra as populações pretas no Brasil e no mundo, pois se a favela existe e é marcada pelo estigma da violência social, esta não vem gratuita ou sem interesse.

Sabemos que a guerra é um produto das relações entre os interesses de mercado e do Estado, a guerra as drogas é um exemplo vivo desses interesses. Sobre o signo de traficante ou usuário de drogas, os agentes do Estado sentem-se livre para realização de práticas de tortura e violência gratuita, estendendo essa condição as pessoas pretas, estas por sua vez, serão sempre suspeitos desses agentes. A questão que o “cidadão de bem” ou “cidadão de bens” no imaginário social brasileiro tem um perfil que não é aquele das pessoas pretas, embora a questão do uso de drogas seja generalizado para todas as classes, raças e grupos sociais, aqueles que são penalizados são as pessoas pobres e pretas.

Em síntese, a “guerra às drogas” é o hálibe do sistema de segurança pública para praticar o terrorismo de Estado contra as populações pretas periféricas e faveladas. Se a desculpa para a violência no país advinha do regime ditatorial, o fato intrigante é que mesmo após o regime, a taxa de homicídios da população negra permaneceu crescendo exponencialmente. A cultura policial no país, a cultura de guerra tem um alvo e esse alvo tem cor. Não é por nada não, mas o delegado Orlando Zacconi pesquisador da área de segurança pública e direitos humanos e que atua para a mudança da atual da política de drogas, em uma de suas palestras afirmou que a maior academia de tiro da América Latina se encontra no Rio de Janeiro, e na parede onde se pratica tiro ao alvo, existe a imagem de uma gigantesca favela para os policiais praticantes. Enfim, como diz um grande poeta “Será que é futuro, se persiste o passado? Será que o Estado é mesmo meu aliado?”.


Bala Perdida


Translation

Favelado's diary

There is much talk about wars in the world. War between peoples, tribes and state nations, wars are not new things. There have been so many wars throughout history that we often accept or treat it as something normal. Often, when someone tells us there is a war here or there, a war against such peoples, between one country or another, we accept it as a banal thing. Finally, the word war is used as a synonym for warlike conflicts, ideological or even between States. Throughout the twentieth century, rulers coined the term “war on drugs" to combat the legal use of substances that alter our perception, termed “drugs." The generic usage of the term refers to any substance that produces some good or bad psychic effect to the human being.

What I want to bring to you is a reflective account of someone born in the heart of a Brazilian favela marked by the context of “drug war". Born and raised in a territory of vigorous social inequality and urban precariousness, both the sale and the use of drugs was never new to me. From childhood, I lived with drug users, traffickers or lived situations of conflict with firearms, which have given me the chance to survive and secure my life only thanks to luck. I say this because I can list more than a hundred people who were my friends at some point, but today they are buried because of such conflicts involving criminal organizations or clashes with the police. However, my intention here is not to create stories about violence to feed a distorted image of the peripheries, as does the Brazilian media. Likewise, I do not want to feed any stereotype or fixed idea of  what it's like to be periférico (a resident of the peripheries), or even what it's like to live in these territories, for the strategies of survival and understanding of reality are as diverse here as anywhere. I present here the account of a favelado that does not conform to the torrent of lies and violence propagated by institutions of power, which feed on social inequality and on the very life of the black and favelado populations in Brazil.

The term favela is the name of a plant originating in the hinterland of Bahia. The uses of the term favela emerge in the context of the “War of Canudos," which was not really a war. We were taught by the media and the school to hide the genocidal practices that the state has been perpetrating against black people over its 500 years. However, I want to say that in Canudos, what really happened was a massacre of Christian populations that decided to create a community based on principles of solidarity and fraternity, between 1896-1977, in regions marked by latifundia and drought. The Brazilian State, feeling threatened by the emergence of the Canudos Arraial, decided to send the army of the newly formed republic to massacre the local population, demonstrating brute force and power. Organized around the principles of the religious leader ‘Antonio adviser’, these thousands of Sertanejos decided to create a community based on principles of solidarity and mutual support.

Three military expeditions were sent and defeated by the local population, using only hoes, machetes and territorial knowledge. Local people had experienced a more just and egalitarian society in a context where half of the national population was in conditions of extreme poverty. Outraged by the defeats, the military decided to destroy the Arraial, massacring its population and generating twenty thousand prisoners of war, among which were women, the elderly and children. The military practiced decapitation of prisoners and arson- the Arraial fire.

What does this story have to do with the favela and the ‘drug war,’ you ask? Well, it is interesting to known that the soldiers sent to the massacre in Canudos were black and poor soldiers, motivated by government gains they were promised if they became victors of the war. They would receive residences and a salary so that they could settle. It turns out that after the soldiers returned and saw that the promise would not be fulfilled, and that the military forces did not abide by the pact, these soldiers occupied part of the morro da Providência in Rio de Janeiro,  in protest, in 1987, and planted the “Favela" seedlings that they had brought from the Canudos massacre.

What I consider relevant in this story is that, if on one hand the military forces were composed of black men who lived under the promise of land and wages after victory in Canudos, these men were without dwelling, income or basic existing conditions. Black populations were expelled from the farms after the signing of the Aurea law in 1888, and thousands of people started wandering through the hinterland in search of survival. Part of these populations decided to build a city from community work inspired by ‘Antonio adviser’, while another party, motivated by the government's warlike motivations, decided to join forces with the State in ostensible action against these communities. Given the conditions for the establishment of this pact, the government paid another population contingent, also desperate with lack of housing, employment and food, to destroy Canudos under the promise of land and pay. Following up the politics of whitening and destruction of black people, which began in 1850, poor blacks have been killing poor blacks in the name of the interests of the Brazilian elites.

This historical account, which I have outlined briefly, is very illustrative of the way the Brazilian State has been treating black populations in this country. The political games that are established in capitalist society- where populations in situations of vulnerability and social precariousness are used as a maneuver of racist governments that act by mobilizing poor sectors to carry out massacres against their own; in wars and conflicts that act in the very destruction and social control of black and indigenous peoples in the name of national sovereignty; coopting and promoting the social ascent and political roles of those who join the national forces; helping perpetrate violence and the maintenance of inequality.

The possibility of social ascension in Brazil for black people needs to break down the structures of power rooted in the set of institutions that constrain and impede the development of black people. Otherwise, this ascension is intrinsically linked to the state, devoid of land, property and citizenship, molded by the fiction of liberal equality- which governs citizenship with private property, with dark people being part of a population that has been enslaved for 400 years and being “liberated" without any kind of social reparation. The jobs that would enable better social accomplishment would be the positions of public servants, as is the case of teachers, police officers, and the like.

What I am trying to say is that keeping people poor is one of the strategies used by the elites to ensure social control through force. So much so, that Michael Foucault himself states that since prisons were created, they were used against the poor, whom had no money for bail and were obliged to serve their sentences by working in slave chains. Social and economic inequality in Brazil has color, territoriality, and follow the political interests of the slave-owning elites. The criminalization of poverty is the strategy to keep the system functioning against black populations in Brazil and in the world, because if the favela exists and is marked by the stigma of social violence, it does not come free or without interest.

We know that war is a product of the relations between market and state interests- the drug war is a living example of these interests. Regarding the sign of drug trafficker or drug user, agents of the state feel free to perform torture and gratuitous violence, extending this condition to black people, who in turn will always be suspects to these agents. The point is that the “good citizen" or “citizen of goods" in the Brazilian social imaginary has a profile that is not that of blacks, although the issue of drug use is widespread in all classes, races and social groups, while those which are penalized are poor black people.

In short, the “war on drugs" is the hallmark of the public security system to practice state terrorism against peripheral black populations and favelas. If the excuse for violence in the country comes from the dictatorial regime, the intriguing fact is that even after the regime, the homicide rate of the black population has continued to grow exponentially. The police culture in the country, the culture of war, has a target and that target has color. Excuse me, but the delegate Orlando Zacconi, researcher in the area of  public security and human rights and who acts to change the current drug policy, in one of his lectures said that the largest shooting academy in Latin America is in Rio de Janeiro, and on the wall where shooting is practiced, there is the image of a gigantic favela for the practicing policemen. Anyway, as a great poet says “Is it future, if the past persists? Is the state really my ally?"


Term Index

Arraial: A small village, hamlet, marked by spontaneity and autonomy.

Áurea, the Law: adopted on May 13, 1888. The law that abolished slavery in Brazil.

Bahia: A state in the Northeast region of Brazil. It was the first point of contact the Portuguese had with what became the Brazilian colony. Its capital, Salvador, was Brazil’s first capital. It’s now the city with the most African descendants outside of Africa (an estimated 80% of the population). Though difficult to cite precisely, Salvador’s port was one to receive the most enslaved Africans (Rio de Janeiro being second). Only in the second half of the 1700’s, almost one million Africans came to Brazil, half of which came to Salvador (the others to Rio and other parts of the coast). Of the almost 5 million total enslaved Africans that came to Brazil during the nearly 500 years of Colonialism, Salvador is undoubtedly the city most affected by this horrific event in history, a legacy and a reality that is still very much alive today.

Favela: A type of slum formed in response to rural exodus (into large cities e.g. Rio and São Paulo), and to over-population, homelessness, lack of infrastructure and social services. Favelas developed into well organized autonomous regions that operate in parallel to the governmental system. They have a parallel economy, infrastructure and security systems, often maintained by trafficking/traffickers.

Latifundia: Plural of Latifundium, a latin word for “Landed State”. In Brazil, it means ‘very large, privately owned, agricultural lands’.

Morro: A hill where there is a favelaFavelas first started forming in hills because they were a sort of terrain unaccounted for by the State or land owners.

Sertanejos: Of the Sertão- inland region, far from the coast, away from urban centers and ‘cultivated’ land.


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