The Consequences of the Lack of Poetry in Witchcraft
Somos produtos em série que, se trocado um número, perdemos função e sentido. Pronto, sem existência digna, menos do que já sistematicamente somos forçados a ser. Para a Bruxa atualmente, nos falta poesia.
De Lilo Assenci
English Translation here.
We are the serial products that lose sense and purpose if our numbers are switched, reduced to a lowly existence, even less than what we are already systematically forced to be. In the eyes of the Witch, today we lack poetry.
From Lilo Assenci
As Consequências da Falta de Poesia na Bruxaria
Em meio ao caos das cidades repletas de concreto, poluição, trânsito e tentativa de sobrevivência, há uma igual tentativa de buscar um local idealizado no meio da floresta onde o oposto destas coisas acontece. Como se a dicotomia cidade versus campo fosse uma realidade palpável, no entanto, inalcançável para todos nós. Há uma eterna vontade daqueles que se identificam com a palavra Bruxa, seja como um ofício, seja como uma religião, seja como os dois em suas diferenças, ou com nenhuma dessas duas coisas, em buscar esse local “na natureza”, como um trono a ser ocupado por alguém importante para o meio que se insere. “Esse é o meu lugar”, elas dizem. Uma forma de recarregar as baterias. Como se na dita natureza houvesse uma tomada onde conectar nossos cabos de alimentação.
Essa diferença entre o que há na cidade e o que há no campo persiste em uma polaridade que joga o praticante da Arte de um lado para o outro, em uma busca incessante por um lugar, como se este lugar existisse em tempo e espaço realístico, e lá houvesse este momento onde “tudo faz sentido”. Onde as coisas se encaixam, o verde é mais verde, as folhas caem em um ritmo capaz de conduzir o transe mais perfeito possível, e o voo da Bruxa é fácil, já que “é natural ali”. O que não contam, é que as bruxas que vão até estes locais continuam sendo o que são: crias de uma região, recortadas e encaixotadas em seu tempo, resultado de uma série de estruturações simbólicas civilizatórias. Resultado da perda da barbárie e do selvagem. Produto de nossa sociedade capitalista.
Há, então, de se pensar em duas questões: a bruxa que procura a natureza, a procura porque acha que lá está a reconexão com um dito sagrado que não encontra na cidade? E, se ela responde afirmativamente esta frase, o que concederia a esta bruxa a capacidade de deixar de ser “cidade” para então ultrapassar as cercas em direção à floresta escura? Absolutamente nada. Nada nos garante que há esse acesso para além da cerca da civilização, onde a floresta urge e o selvagem vibra. Tocamos este local em nossos ritos, vivenciamos em nossos feitiços, urramos os muitos nomes dos seres que habitam este lugar, mas retornamos para o lado de dentro da cerca como um cachorro que busca seu espaço dentro da casa quente e aconchegante de seu dono. Porque a civilização não abandona a bruxa que vai até a floresta. Entranha-se com força, enraíza-se em suas palavras e pensamentos. E nem a floresta domina e derruba a civilização presente na bruxa como uma conquistadora de territórios. Sem verde, sem despertar cósmico sagrado divino ancestral antigo.
O olhar direto para essa dicotomia é uma prática comum do ser humano, um maniqueísmo utópico que a bruxa debate vez e outra consigo mesma e com suas iguais, em busca de filosofias, racionalidades, academicismos e, de vez em quando, uma pitada de repetições aleatórias de frases bonitas. “Sou filha do selvagem e do desconhecido”. Sim, e é filha também do concreto, da Maria e do João, prima do Felipe e estuda Direito na faculdade pública. O olhar para essa possível diferença nos priva de enxergarmos outros questionamentos que podem surgir: ficamos como o cachorro que deseja sair de casa para brincar no quintal, mas deseja no fundo de seu coração que a porta de casa esteja aberta quando retorna, e então pode se deitar aos pés de seu dono no final do dia. Esquecemos, então, o que acontece durante o trajeto. Esquecemos, então, a experiência que perpassa nosso corpo e nos desloca pela porosidade da dicotomia cidade x natureza, e nos desloca para um território desconhecido: a poesia.
Nos falta poesia. Nos falta poetizar a Bruxaria. Nos falta rimar, declamar e cantar a Arte como se houvesse a possibilidade de que ela vazasse de nossos corpos por nossos poros, sem que houvesse uma palavra sequer a ser dita. A falta da poesia nos lábios enrijece a língua, petrifica as mãos e os pés, turva a visão e ensurdece os ouvidos. Não nos sobra nada para sentir que toque verdadeiramente o que somos enquanto Bruxas. Nos resta debater onde recarregar as baterias na próxima viagem para o meio do mato, sem nos darmos conta da viagem poética que negamos a nós mesmos. Do dançar do som, da vibração, das cores e da sinestesia em nossos corpos, percorrendo corpomenteespíritoauravozsussurro e chegando a um lugar que nem é um lugar, nem um momento, mas uma experiência. Como se engarrafa uma experiência? Como se corporifica? Onde se enquadra a memória de uma experiência como essa?
Nos falta poesia. Nos falta exaltar a nossa Arte como se falássemos de uma amante para ela mesma, descrevendo o indescritível, sabendo que falhamos no processo, mas continuando mesmo assim. Nos falta sorrir enquanto enfeitiçamos, misturando cuspe, suor e palavras em uma mistura capaz de corroer o sistema, desfazer o nó do capitalismo, destruir um Império. Quando dançamos, os corpos ensaiam poses e figurações duras, como bonecos que imitam uns aos outros, sem conhecimento do ritmo interno que, ao invés de fervilhar e borbulhar, fermenta fechado e lacrado em uma caixa jogada ao canto de nossa alma.
Nos falta poesia. Nos falta a entrega inocente, desejante, despudorada da bruxa nos braços de seus espíritos. O abandono legítimo de uma linha reta, do uso de vírgulas, pontos e acentos, de pintar reconhecendo as bordas e limites de um suposto desenho. Nos falta furar o limite que contorna civilizadamente os nossos próprios limites, nos confundindo e homogeneizando. Somos produtos em série que, se trocado um número, perdemos função e sentido. Pronto, sem existência digna, menos do que já sistematicamente somos forçados a ser.
Para a Bruxa atualmente, nos falta poesia. Nos falta contar nossas histórias sem a necessidade de todos os fatos corretos, mas sim da transmissão de uma essência que não é passível de catalogação: somos qualquer coisa, menos guardiãs imortais de uma memória ancestral. Perdemos coisas, nos apoiamos em caquinhos daqui e dali, reconstruímos um vaso imperfeito que falta pedaços importantes, e quando preenchemos estes pedaços com o ouro de nossa experiência, foi porque a poesia se fez presente. A Bruxaria é, afinal de contas e em última estância, um fenômeno poético e um legado humano e não humano, pronto para ser reivindicado por aquela que ousar sair de sua fila do banco, do seu feed do Instagram, da sua timeline do facebook, e poeticamente enfeitiçar-se em uma inebriante dança sem início, meio ou fim, com sua comunidade. Afinal, a vida e a Bruxaria são um eterno feitiço de amor murmurado nos lábios da Bruxa em êxtase enquanto espirala com seus espíritos em direção ao mito dos mitos, que é seu próprio mito, mas também é o mito de toda humanidade.
Nos falta poesia.
Que a poesia não nos falte jamais.
Lilo Assenci
Noite de Beltane, 2019
The Consequences of the Lack of Poetry in Witchcraft
In the midst of chaotic cities filled with concrete, pollution, traffic and the need to survive, there is also the desire to find in the middle of the forest an idealized space where the opposite is real. It is as if the divide between the city and the country were something tangible and yet, at the same time, inaccessible. There is endless yearning among those that identify with the term Witch – be it as a craft, be it as a religion, or be it as both with their own differences, or be it as none of these things – to search for this place “in nature”, as if it were a throne to be occupied by someone important. “This is my place”, they say. A way of charging their batteries. As if in “nature” there were a socket where we could hook up our feeding tubes.
This difference between the city and the countryside abides in the pendular movement that swings the practitioner of the Craft from one pole to the other, in an unending search for belonging, as if such a place really existed, where there would be a time when “everything makes sense”. A place where things would fit in, where the green would be greener, where the leaves would fall in a rhythm able to conduct the deepest trance, and where the flight of the Witch would be straightforward, since, there “it comes naturally”. What they do not say is that witches who go there are still what they are: the products of a determined place, cut out and boxed in by their own era, the result of a series of civilizational symbolic processes – the result of the loss of barbarity and of savagery. The product of our capitalist society.
There are two questions, then. First, does the witch that seeks nature seek it because she thinks there she will reconnect to something holy she cannot find in the city? And – second –, if she responds yes, what would give this Witch the ability to leave the “city” and then jump over the fences that block the way to the dark forest? Absolutely nothing. Nothing guarantees us that there is this exit from civilization, where the forest urges and the savage pulsates. We feel this place in our rites, live in it our spells and howl the many names of the beings that dwell there, but then we jump back over the fence like a dog that looks for its nook inside its owner’s warm and cozy house. Civilization does not abandon the witch that goes to the forest. Instead, it reaches in even deeper, rooting itself in her thoughts and words. And the forest cannot dominate and purge the civilization in her like some conqueror of new lands. No new greenery, no sacred-cosmic-divine-ancestral-ancient awakening.
A superficial view of this dichotomy is common practice for humans; it is a Utopian Manichaeism that the witch debates from time to time with herself and her kin, searching for philosophies, rationalities, speculations, and, from time to time, a pinch of rote repetition of pretty words. “I am the daughter of the savage and of the unknown”: yes, but also the daughter of concrete, of Mom and Dad, a cousin of John and who studies Law at an esteemed university. Simply looking at this difference keeps us from being in tune to other questions that may arise: we are like dogs, who like to go out into the yard and play, but then to return to an open door and sit at their owners’ feet at the end of the day. We forget, then, what happens during our journey. We forget the forces that run through our bodies and that push us through the porous city-countryside divide, taking us to unknown lands: poetry.
We lack poetry and witchcraft, in turn, needs to be turned poetic. We need to rhyme, recite and chant the Craft, so that it could maybe ooze out through our pores, without one word being said. The lack of poetry on our lips hardens our speech, cramps our feet and hands, fogs up our sight and deafens our ears. Nothing that reaches out to whom we are as witches remains. We are then left debating where to charge our batteries in the next trip out to the woods, without realizing the poetic journey we have denied ourselves: one of dancing sounds, of vibrations, of colors and of synesthesia in our bodies, passing through mindbodyandspirityauravoiceandwhisper and arriving at a place that is not even a place or a moment, but an experience. How can an experience be bottled up? How can it be embodied? Where does such a memory fit in?
We lack poetry. We need to praise our Craft as if we spoke to our lover about herself, describing the indescribable, knowing that we will lose something along the way, but going on all the same. We need to smile while we bewitch, mixing spit, sweat and words in a maelstrom strong enough to corrode the system, untie the knot of capitalism and destroy an Empire. When we dance, our bodies rehearse stiff forms and poses, like dolls that copy one another, not recognizing the inner rhythm that, instead of boiling and bubbling up, ferments in a lonely chest forgotten in some corner of our soul.
We lack poetry. We lack the innocent, desiring and shameless release of the witch into the arms of her spirits. The legitimate abandonment of a straight line, of commas, dots and accents – to paint taking care of the edges and limits of a so-called drawing. We need to pierce the barrier that castles in our own limits, confusing and polishing our fringes. We are the serial products that lose sense and purpose if our numbers are switched, reduced to a lowly existence, even less than what we are already systematically forced to be.
In the eyes of the Witch, today we lack poetry. We do not need correct facts to tell our tales, but instead the essence of something that cannot be classified: we are anything but the immortal guardians of ancestral memory. Some things are forgotten, others are leaned on here and there, building an imperfect jar that lacks key pieces. But when that jar is filled in with our golden experience, it is because poetry had shown itself. Witchcraft is, after all, a poetic phenomenon and a human and non-human heritage, ready to be grasped by those who dare leave the ATM lines, their Instagram feeds and their Facebook timeline, and poetically bewitch themselves in a communal, drunken and endless dance, with no middle or end. After all, life and Witchcraft are an eternal spell whispered by the lips of an ecstatic Witch that whirls with her spirits up into the myths of myths, which is her own myth, but also the myth of all humanity.
We lack poetry.
May we never lose our poetry.
Translation by Felipe Moretti
Lilo Assenci
Lilo Assenci is a Witch, a Priest, a Moon Rabbit, translator and teacher. Member of the Gods & Radicals Editorial Committee, his work is deeply connected with anarchism, witchcraft, paganism, Brazillian folklore and political-magical activism. He is part of the Feri, Reclaiming and Hekate's Tribe Traditions, weaving magic, healing, activism into a self-possession and integration work. He also loves coffee and reading.